quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Maria Luiza

Maria Luiza
               ou    O dia em que chorei em uma audiência


A história de Maria Luisa é breve como sua existência. Na inocência de seu um aninho e pouco, com a boca ainda vermelha dos comprimidos de sulfato ferroso que ingerira pensando que fossem balinhas, disse sorrindo para a mamãe “papei tudo”. 
A mãe de Maria Luiza, inexperiente em seus vinte anos, perguntou para a avó da menina se fazia mal que ela tivesse tomado, pelos seus cálculos, quase meio vidro dos comprimidos, e a avó, apavorada, aconselhou que a levasse ao hospital.
Por fim, a mãe-menina levou a filha no posto de saúde mais próximo, para fazer mais rápido.
A enfermeira vestida de branco passou-se por médica aos olhos da incipiente mãe, que sequer questionou quando aquela, sem nem examinar a menina, mandou-a de volta para casa, recomendando que desse suco de gelatina para a criança, que esta apenas teria uma dorzinha de barriga, nada demais.
De fato, a pequena começou a queixar-se de dor de barriga, passada uma hora da ingestão, dor essa que foi aumentando a ponto de fazer a menina se contorcer e chorar muito.
Decidiram levá-la ao pronto socorro da cidade, onde no caminho a menina desmaiou de dor, o que se revelou, ao chegar ao hospital, que, na verdade, entrara em coma. A correria foi grande para tentar salvar Maria Luisa, pois a medicação já tinha sido absorvida pelo organismo. Chegou a ser removida a Porto Alegre, porém não resistiu à gravidade de seu quadro, vindo a falecer no dia seguinte.
A história de Maria Luisa chegou até mim por meio de um processo criminal contra a enfermeira. À dor da mãe juntou-se a minha e quase não consegui fazer as perguntas na audiência pelas lágrimas que me caiam dos olhos e o nó que eu tinha na garganta.
Errou a mãe que não percebeu a filha tomando a medicação, enquanto fazia o almoço. E se poderia julgar uma mãe iniciante, multitarefas no revezamento do cuidado da casa e de uma criança pequena? Mais, poderíamos dizer que errou ao confiar na pessoa de avental branco que a atendeu? Seria correto exigir-lhe que não confiasse?
Errou a enfermeira que não encaminhou o caso com urgência ao médico plantonista, subestimando os efeitos de uma intoxicação por sulfato ferroso. Estaria ela com excesso de trabalho? Queria provar conhecimento? Tentava cobrir o furo da falta de médicos no local ou era conivente com algum médico que não queria atender?
A resposta para essa sucessão de erros é que Maria Luisa pagou com a vida. Com a sua e com um pedaço da de sua mãe, pai, avó, familiares. Até de mim, que nem a conhecia, arrancou-me um naco dolorido, eu que estou acostumada com essas coisas, depois de tantos anos atuando no crime, mas depois que virei mãe, as dores do mundo me pesam demais.
A natureza devia ter permitido sete vida às crianças, como garantia de protegê-las de sua curiosidade e inocência, mas, acima de tudo, dos erros e omissões dos adultos, seus descuidos e falta de atenção pelo excesso de tarefas ou seja lá por que motivo for.
Deus, ou o ser superior em que você acredita, deve ter as suas razões para ter levado esse anjo tão cedo. Se foi para nos ensinar, que façamos todos a lição de casa: tirar os remédios, produtos e utensílios perigosos do alcance das crianças; ainda assim, não pregar o olho delas quando estiverem sob nossos cuidados; pais negligentes, abusadores, que maltratam e colocam os filhos em risco devem ser delatados; se você não é médico, não se meta a receitar ou medicar quando não está preparado para tal, chame quem estudou e tem diploma para isso. Se desconfiou, busque uma segunda opinião. Fiscalize o atendimento prestado nos postos e hospitais, denuncie, exercício ilegal da profissão continua sendo contravenção penal e sujeita a outras sanções administrativas sérias, cabíveis também a médicos pagos com dinheiro público que não trabalham. Algumas atitudes preventivas podem ser a diferença entre preservar uma criança viva ou não.
Maria Luisa, pelo menos para mim e para todos que conhecerem sua história, tenho certeza, não terá sido em vão.


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