domingo, 15 de abril de 2012

Por onde se lança a violência

Estive pensando a respeito da jornalista do Sunday Times, Marie Colvin, morta em um ataque na Síria, em fevereiro deste ano, juntamente com o fotógrafo Rémi Ochilik, quando cobriam os conflitos. A repórter ostentava um tapa-olho, simbolizando o compromisso com seu ofício: uma marca da cobertura da guerra civil no Sri Lanka, em 2001, que lhe tirou parte da visão. Durante três décadas, ela esteve desempenhando a profissão em alguns dos confrontos mais sangrentos da atualidade. O tapa-olho devia ocultar apenas uma das suas cicatrizes.

Tenho treze anos de profissão como Promotora de Justiça, dez deles na área criminal. Acostumei-me a ver a violência pungindo as vítimas com chagas de brasa e mágoa. Marcas internas, porém quase tangíveis pela consistência dolorida dos relatos e do peso dos acontecimentos, que impregnam o ar da sala de audiências e repugnam o estômago do ouvinte. E a mim mesma embrutecendo, dia após dia, perdendo a inocência, a fé no ser humano, sem saber como lidar diante de tanto sofrimento.

Ao recontar um crime, a vítima o revive, e quem escuta compartilha do episódio. Minha alma vai se encolhendo, encolhendo, a ponto de encostar-se às costas. Sobra corpo para um eu tão oprimido.
Uma análise da matéria que me compõe revelaria incontáveis solidificações protetivas, combinadas com sulcos na carne dos sentimentos reprimidos, rotulados com a tarja conformista de “ossos do ofício”, e que viabilizam às pessoas que trabalham em situações críticas continuar sua labuta. Seguir vivendo.

Quem já foi alvo da maldade alheia, seja crime ou não, fica dias, meses, talvez anos, revivendo as cenas, sentindo as consequências do dano impingido. Quando envolve violência, dificilmente se esquece. E se a vítima for criança? E se o crime for abuso sexual?

Eis algo contra o qual a experiência da profissão não conseguiu me blindar. Impossível manter-se apático quando se é jogado na escuridão de um túnel dos horrores, com o mau cheiro invadindo as narinas até as entranhas, para ao final se deparar com a verdade crua contada pelos olhos da criança.

Até os sete anos, os pequenos são como esponjas absorvendo toda a realidade sem questionar. O entendimento é limitado. Um ínfimo dilema é um drama sem fim. O que acontece, então, quando a vida é um pesadelo de verdade? Assimilam-no como natural. Amoldam-se. Não cause surpresa se vierem a repetir a violência sofrida. E o Estado, pelo visto, não percebe a urgência de intervir em prol da infância, protegendo-os integralmente, garantindo educação e dignidade.

Já vi tanta coisa. Um tapa-olho seria apenas a bandeira marcando a ponta do iceberg das cicatrizes. Ninguém se surpreenda se eu passar a ostentar a venda da Justiça, na cor negra, em minha indumentária ou amarrada no braço, em protesto contra a violência e seu rastro de estrago coletivo. Em respeito às vítimas. E a você, que sente os respingos, enquanto apenas passa na rua ou lê este texto.

(texto publicado na intranet do Ministério Público do RS em 20/03/12).