quarta-feira, 25 de julho de 2007

A Dor Que Ninguém Vê

Pediu para não se identificar. A moça de trinta anos e cara de menina contou, com os olhos cheios de lágrimas que, por volta dos dez anos, tinha sido abusada sexualmente por um tio. –Ele fazia de tudo comigo. Eu era só uma criança.
Seus pais deixavam a menina e os irmãos na casa de parentes. O tio criava situações para ficar sozinho com ela. Ameaçava de morte para que não contasse nada. Com o tempo, aquele ser patológico começou a esperá-la no final da escola. Fingindo-se de cliente, pegava a chave de imóveis disponíveis para locação, em imobiliárias, e levava a criança para lá, cometendo os abusos.
A moça cresceu sem jamais contar a ninguém. Conviveu e torturou-se por anos, até perceber que, muitos dos traumas que trazia, tinham fundamento naqueles fatos. Resolveu contar-me “para evitar que ele não fizesse com mais crianças e elas não sofressem como eu.” Sabia que, dado ao tempo, não poderia mais ser punido pelo que fizera a ela, por mais que as conseqüências ainda se fizessem presentes, como fantasmas.
Enquanto ouvia a história, um nó começou a se formar em meu estômago, misturado a um sentimento de revolta e impotência.
Até para alguém acostumada a lidar com casos de abuso sexual envolvendo crianças, sempre chocantes e difíceis, o caso dela me tocou em particular.
Alguém já presenciou a dor e o sofrimento de uma moça que ainda se emociona, depois de vinte anos, ao contar os fatos traumáticos que marcaram sua infância e que a faz chorar como criança ao relatá-los, como se os estivesse vivendo novamente?
Uma pessoa, de bom nível social, que passou pelas mesmas dificuldades que passam as vítimas crianças dos processos em que trabalho, geralmente de classes menos favorecidas, e que, por melhor sorte, tiveram seus casos descobertos e a violência cessada.
No caso dessa moça, ela muito se ressente de que os pais nunca tenham prestado atenção no que estava lhe acontecendo, tendo a situação perdurado por anos.
A história dela pode ser a de muitas mulheres ou homens. Filhos de pais negligentes, que não percebem o que se passa com seus filhos.
Pesquisei a vida pregressa desse abusador e descobri que ele respondeu a termo circunstanciado por perturbar outra menina, a qual ele perseguia na saída da escola e oferecia presentes para que o deixasse tocá-la. Felizmente, os pais agiram a tempo, e o registro de ocorrência impediu que o caso tivesse conseqüências mais graves. Vê-se que o abusador nunca pára numa vítima: ele tende a repetir o ato, em face da síndrome de adição que o acomete. A criança é vista como uma droga, da qual não consegue se abster.
O abuso sexual de crianças envolve segredo, onde o abusador manipula a vítima para que não conte os fatos a ninguém. Faz com que a criança acredite que é culpada daquilo, que quis o ato. Muitas vezes, em razão da idade, ela não diferencia o certo do errado. É convencida de que o abuso é natural. Ele a ameaça ou dá presentes para que faça o que ele quer e não o delate. Os casos intra-familiares são os mais difíceis de detectar, justamente por este sentimento de amor e ódio que a criança nutre pelo abusador, e a pressão psicológica sofrida, fazendo com que ela omita o que está lhe ocorrendo. Entretanto, utiliza-se de sinais para comunicar-se, esperando ser compreendida. As crianças pequenas costumam demonstrar o abuso em desenhos, ou formas não-verbais. As alfabetizadas, em redações ou histórias, narrando fatos como se tivessem acontecido com outra pessoa. Algumas apresentam alterações de comportamento, como rebeldia, retraimento, tristeza, agressividade, sexualidade exacerbada, e até sinais físicos, como doenças sexualmente transmissíveis, machucados, marcas pelo corpo, etc.
Nenhum de nós está preparado para lidar com essas situações. Precisamos mudar esse quadro, preparando pais, professores e profissionais de saúde a atentarem para os sinais de seus filhos, pupilos e pacientes, pois, de alguma, forma eles tentarão comunicar o que está ocorrendo. Precisam aprender a enfrentar o problema e a adotar medidas que cessem o abuso e protejam a criança de novas violências. A própria criança necessita aprender a diferenciar a situação de abuso e a se defender, recorrendo a um adulto de confiança. Pequenas atitudes que evitariam os muitos traumas e sofrimentos silenciosos que têm corroído a infância.
Artigo publicado no jornal O SUL de 15/07/07.

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